Florestas megadiversas são legado dos povos indígenas 246g30

FSP, Tendências/Debates, p. A6 - 20/05/2025
Florestas megadiversas são legado dos povos indígenas
Presença é fundamental para a preservação ambiental e não deve ser vedada, mesmo em unidades de conservação de proteção integral

Manuela Carneiro da Cunha
Antropóloga, é membro da Academia Brasileira de Ciênci

Rivelino Verá Popygua
Liderança da Terra Indígena Kuaray Haxa, no Paraná, é membro da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY)

Eduardo Góes Neves
Arqueólogo, é professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP)

Ninguém conserva as florestas brasileiras como os povos indígenas que zelam por elas. Esta afirmação é atestada na melhor pesquisa científica, que dá evidências da contribuição de humanos para a existência das florestas e da megadiversidade do Brasil. Não quaisquer humanos, porém. Esse aporte depende do modo de vida, das práticas e dos valores de certos povos.

Povos indígenas no Brasil comumente não se consideram os únicos donos das matas: todos os outros seres, plantas, animais, rios, pedras são zelados pelos seus guardiões e compartilham direitos. São povos da megadiversidade. Por isso sua presença é central para a conservação e não deve ser vedada, mesmo em unidades de conservação de proteção integral.

Esse debate, que parecia superado, ressurgiu quando, em fevereiro, foi firmado um termo de compromisso entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e uma comunidade guarani no litoral do Paraná. O objetivo é que os indígenas permaneçam na terra indígena (TI) Kuaray Haxa, que é sobreposta pela Reserva Biológica (ReBio) Bom Jesus e está em processo de demarcação pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Entidades conservacionistas protestaram. Protesto surpreendente, tendo em vista a mudança de atitude firmada há mais de uma década que consigna os benefícios da gestão de povos indígenas e tradicionais em áreas de conservação integral. Como se não bastassem os relatórios que o atestam da Plataforma Intergovernamental da Biodiversidade (IPBES), essa forma de gestão compartilhada foi até recomendada em documento de 2021 da FAO como oportunidade para a América Latina e o Caribe. Nesse documento, o Brasil foi um dos três exemplos mais promissores citados. E, para sair da esfera internacional, basta lembrar que o ICMBio/AGU firmou, também em 2021, o parecer vinculante 175, com a mesma orientação.

A verdade é que essa natureza que se quer proteger tem uma história de presença indígena milenar -e que a mata atlântica, o bioma mais biodiverso do mundo, é também uma floresta antropizada, que resulta da regeneração promovida por roçados tradicionais. O sambaqui de Capelinha tem 9.000 anos, é o mais antigo do Brasil e está localizado próximo à ReBio Bom Jesus. Todo o complexo lagunar que vai de Iguape (SP) a Paranaguá (PR) está lotado de sítios arqueológicos desse tipo.

Embora os povos sambaquieiros não sejam historicamente relacionados aos guaranis, a presença antiga desses povos, seguida pela história também antiga dos povos guaranis no sul do país, mostra que não se pode separar a presença milenar dos povos indígenas, exercida através do cuidado com seu território e de suas roças, ricos repositórios de agrobiodiversidade, da história da formação desses locais que o Estado deve proteger. Tais naturezas só existem como as conhecemos hoje graças aos povos indígenas.

Um estudo lançado pelo Instituto Socioambiental (ISA) demonstra que as terras indígenas na mata atlântica, além de protegerem contra o desmatamento, favorecem a regeneração de áreas desmatadas.

Há um ganho médio de 22% na relação entre regeneração e supressão da cobertura vegetal entre 2001 e 2021. Só no entorno da aldeia Kuaray Haxa, o ganho foi de 27,95% de floresta entre 2007 e 2017.

Certamente não é por acaso que ao menos dez unidades de conservação de proteção integral na mata atlântica incidam sobre terras guaranis: os guaranis sempre preservaram, nos fragmentos diminutos de seus territórios, os mínimos espaços florestais. Restaria incorporar na gestão dessas áreas as práticas e valores dos guaranis, que tanto já têm contribuído.

É porque a mata foi criada e é regida por Nhanderu ("Deus", em tupi-guarani), que os guaranis consideram que cabem aos humanos proteger a floresta. Seu principal cuidado é a manutenção dos processos ecológicos, como lembra a comunidade de Kuaray Haxa em carta recente: "Nós conhecemos cada pedaço do nosso território. Sabemos por onde circulam cada um dos animais que moram nele e as ameaças que eles enfrentam. Nós andamos todos os dias por essa floresta buscando protegê-la como Nhanderu nos ensina para que nossos filhos e netos possam seguir vivendo bem junto às matas, de acordo com o nosso nhandereko, o nosso modo de vida tradicional".


FSP, 20/05/2025, Tendências/Debates, p. A6

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/05/florestas-megadiversas-sao-legado-dos-povos-indigenas.shtml
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